Brasil 2022: o Resgate Indispensável

A pouco mais de um ano de completar dois séculos de vida como nação independente, o Brasil vive sua crise mais profunda e dramática. O aspecto mais aparente é o sanitário: desde março de 2021, o país voltou a ser o epicentro da pandemia de covid-19 – em boa medida, devido à negligência e sabotagem do governo federal. No final de abril, número de óbitos ultrapassou 400 mil. Embora reúna apenas 2,67% da população do planeta, o Brasil já concentrava 12,7% das mortes por coronavírus. Mas esta situação fúnebre é apenas parte de um cenário desolador mais vasto. No início de um século que promete ser marcado por grandes transformações, o país regride. A economia vive a fase mais aguda de uma reprimarização econômica que se arrasta há quatro décadas – uma marcada pela crise do endividamento externo (1980) e as demais sob intensa pressão das políticas neoliberais (1990-2020). A participação brasileira no PIB mundial, que chegou a 4,4% em 1980, despencou para 2,5%. O país voltou ao mapa da fome da ONU e está, mais uma vez, entre os dez mais desiguais do mundo, em distribuição de renda. O aumento da miséria escancara-se nas ruas coalhadas de famílias sem teto ou abrigo. Em condições tão desoladoras, retomar a esperança exigirá enorme determinação política e capacidade de promover mudança. O projeto que agora apresentamos pretende ajudar a construí-las. Identifica, em primeiro lugar, alguns pontos de apoio. Embora com enorme atraso, e um número assombroso de mortes desnecessárias, a pandemia deverá refluir, em alguns meses, graças à vacinação. Tudo indica, além disso, que desgaste político e de popularidade do atual governo, que promove ativamente a devastação nacional, irá se ampliar. No início do segundo semestre de 2021, quando faltar aproximadamente um ano para o início da disputa presidencial, é provável que o Brasil se veja como as nações que enfrentam a ressaca de guerras cruentas. Nesses momentos, feito o luto, encara-se a reconstrução. Mas por que caminhos? Outras Palavras pretende enriquecer o debate nacional propondo a construção de ideias-força para um processo de reerguimento que precisa começar agora – mas deve ter fôlego para buscar mudanças que se desenvolverão nos próximos vinte anos. Não se trata de formular um programa de governo – tarefa mais própria dos partidos políticos, e frequentemente de fôlego curto. Mas de sustentar três noções indispensáveis, porém ainda ausentes: a) Passada a fase mais dramática da crise, não é aceitável voltar ao “velho normal”; e não bastará afastar o bolsonarismo para “recolocar o país nos trilhos”. Será preciso um enorme impulso de mobilização para lançar a retomada; para passar àquilo que Naomi Klein chamou, em escala mundial de “os anos da reparação”; b) O debate político brasileiro ainda não considera boa parte das propostas que pode compor este processo. Ao menos desde 2010, quando o projeto petista-lulista chegou a um impasse e as elites reagiram com ferocidade inédita, o país mergulhou numa polarização vazia. Ela tornou difícil enxergar o surgimento, em várias partes do mundo, de ideias e propostas essenciais para que a busca de alternativas ao neoliberalismo seja mais que uma mera repetição de slogans. Estão entre estas propostas: > A superação das políticas de “austeridade” (aqui, ainda vigentes com força); > A Teoria Monetária Moderna, que propõe aos Estados emitir dinheiro para garantir direitos sociais, renovar a infraestrutura e iniciar a transição ecológica; > O Green New Deal, que poderia ser traduzido em português como “Virada Socioambiental”; > As políticas de Emprego Público Garantido, vinculadas tanto à recuperação dos direitos trabalhistas quanto à realização dos dois objetivos anteriores c) Não se trata evidentemente, no Brasil, de transplantar ideias estrangeiras, mas de estabelecer um diálogo entre duas tradições democráticas riquíssimas. De um lado, a brasileira, inaugurada na resistência de massas à ditadura, no final dos anos 1980, e que gerou experiências notáveis, como a emergência de um “novo sindicalismo”, de um partido de esquerda com enorme penetração popular e de governos que vertebraram, a partir da virada do século, a “onda rosa” da América Latina. De outro, a internacional, que originou, a partir da crise do capitalismo de 2008, experiências como a liderança de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico; as duas candidaturas presidenciais de Bernie Sanders; movimentos como o dos Indignados; o Momentum; o Sunrise e Black Lives Matter. * * * O projeto “Diálogos por Outro Brasil”, aberto em 2020 para debater “O Futuro do Trabalho”, terá em 2021, o título “O Resgate Indispensável”. A partir das bases estabelecidas acima, Outras Palavras proporá 12 ideias-força, pouco presentes no debate político atual mas necessárias para enriquecer os programas de mudança do país, e influenciar as eleições de 2002. 1. Multiplicar o Investimento Público, em ruptura radical com as ideias de “austeridade” e “ajuste fiscal” Emitir moeda nacional para redistribuir riqueza por meio dos serviços-publicos e da transformação das redes de infra-estrutura. Promover o “quantitative easing for the people”. 2. Resgatar o SUS, que se tornou, durante a pandemia, símbolo da importância do serviço público. Recuperar as ideias de Direito à Saúde que iluminaram a criação do Sistema Único de Saúde nos anos 1970-80. Assegurar, a partir dos êxitos alcançados e das dificuldades e impasses a enfrentar, que o Brasil possua um serviço que seja referência internacional. Tomar este resgate como paradigma para serviços públicos de excelência 3. Construir a rede brasileira de serviços públicos de excelência: A partir dos direitos assegurados na Constituição de 1988 e da importância demonstrada pelo SUS na pandemia, transformar a Saúde, a Educação, e os Transportes Públicos. Garantir que a melhor escola seja a pública. Transformar as redes de transporte coletivo das cidades. 4. Virada socioambiental (Green New Deal brasileiro). Recuperar e transformar a infraestrutura, com transição ambiental acelerada. Rever, em especial, a matriz energética, que precisa privilegiar as fontes solar e eólica, e o sistema de transportes, com restauração e modernização da antiga rede de ferrovias. 5. Introduzir o direito ao Trabalho Digno Garantido e à Renda Básica da Cidadania, como políticas para executar a Virada Socioambiental, reduzir drasticamente a desocupação, enfrentar o empobrecimento e a fome e introduzir formas pós-capitalistas de distribuição de riquezas. Restaurar os direitos laborais e sindicais eliminados pelas contrarreformas pós-2016. Buscar ativamente a Redução da Jornada de Trabalho 6. Iniciar a revolução urbanística das periferiascomo base para enfrentar uma desigualdade central na vida brasileira contemporânea: a que reproduz, nas metrópoles, a relação Casa Grande – Senzala (transmutada em Centro-Quebradas). Assegurar moradia digna, em bairros urbanizados e seguros, servidos de transporte público eficiente, para cerca de 70 milhões de brasileiros hoje desprovidos deste direito básico. Enfrentar a ditadura do automóvel e da especulação imobiliária nas cidades 7. Estabelecer uma Rede de Bancos Públicos e Comunitários, como passo indispensável para livrar as famílias, os Estados e Municípios e as pequenas e médias empresas de um volume de dívidas massacrante. Rever a desestatização sem critérios das últimas décadas. Reconstruir as empresas públicas brasileiras, associadas a projetos estratégicos ao desenvolvimento sustentável, à transição ecológica, à restauração da infra-estrutura e à garantia dos direitos sociais. 8. Estimular e articular uma rede de pequenas e médias empresascooperativas e empreendedores individuais. Reverter o processo de falências em massa e de ultraconcentração empresarial que era anterior à pandemia e foi muito agravado por ela. Desenvolver, inclusive com base em exemplos internacionais, políticas para proteger estes empreendimentos e para estimular seu ressurgimento. Adotar medidas anticoncentradoras, em especial no comércio e serviços. 9. Recuperar a Petrobras e a soberania sobre o Pré-Sal. O papel estratégico da empresas, como indutora do desenvolvimento industrial, das regiões petroleiras e da própria produção cultural. Em paralelo, o Pré-Sal como garantia da geração de divisas fortes, que o Estado brasileiro não pode emitir. Constituir, com parte dos recursos do petróleo, um fundo que garanta da liquidez internacional e acesso a bens e serviços indisponíveis em moeda nacional – em especial a tecnologia necessária para os Anos do Resgate. 10. Lançar um Programa de Reindustrialização Qualificada, articulado a partir dos serviços públicos. Transformar a grande demanda brasileira por serviços de Saude, Educação, Transportes e Habiação em alavanca para desenvolver, com base em compras públicas, uma indústria moderna e robusta nestes ramos. Adotar medidas para que este avanço se difunda para outros setores industriais. 11. Iniciar a Transição Agroecológica com Reforma Agrária. Superar a gravíssima subutilização da terra no país, reduzindo as pastagens e o plantio de commodities. Estimular a Agroecologia por meio de terras, crédito, tecnologias. Interromper e reverter a grilagem de terras públicas. Adotar política de aproveitamento econômico sem desmatamento dos biomas brasileiros, em especial a Amazônia, o Cerrado e a Mata Atlântica 12. Desenvolver a vocação do país para a Economia do Imaterial. Estimular os serviços sofisticados ligados a Conhecimento, Ciência, Cultura, Comunicação e Artes. Tirar proveito de traços culturais brasileiros como a sociabilidade e a inventividade para estimular a produção imaterial qualificada. Multiplicar a presença destes eixos nos currículos escolares. Retomar, de forma ampliada, a experiência dos Pontos de Cultura. Implantar, em especial nas periferias, uma vasta rede de Laboratórios de Criação.

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